O mundo das aparências: uma leitura do texto “O mundo do Catch” escrito por Roland Barthes

Wagner Francesco
7 min readApr 5, 2023

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Roland Barthes é um escritor francês, nascido em 1915, e que, por sua genialidade e inovação, firmou-se como um dos principais teóricos no campo da literatura. Suas pesquisas deram enormes contribuições aos estudos da Semiologia e, neste campo, produziu livros importantes como “A aventura semiológica” e “Mitologias”.

No citado “A aventura semiológica” (2001, p. XII e XIII), Barthes anota que:

A semiologia não é uma causa; mas uma ciência, uma disciplina, uma escola, um movimento com os quais eu identifique a minha própria pessoa. A semiologia é uma aventura: pessoal, mas não subjetiva, pois que é precisamente o deslocamento do sujeito que no caso é posto em cena.

Assim, Barthes deixa claro que, para ele, a semiologia não era um lugar para chegar, mas um caminho para percorrer. Uma ciência em constante mutação e, lógico, sujeita ao seu próprio tempo. Inclusive, esta ideia foi melhor demonstrada na introdução do livro “Mitologias” (1972, p. 7) quando, neste ponto, o autor destaca que

Os textos que se seguem foram escritos ao sabor da atualidade (au gré de l’actualité) […] O material desta reflexão veio a ser muito variado e o assunto muito variado: tratava-se evidentemente da minha atualidade.

O termo francês “au gré”, que aparece no texto original do Barthes, significa, dentre outros sinônimos, “de acordo”. Assim, a semiótica do autor estava preocupada em “analisar a vida cotidiana francesa”, “a atualidade”, porque assim convinha ao intelectual que não é alienado de seu tempo. É também, ou principalmente, de acordo com a realidade que o semiólogo deve construir seu pensamento e suas considerações.

Caminhando nesta trilha de pensamento que Roland Barthes publicou “O mundo do Catch”, que é o primeiro texto do livro “Mitologias”; e deste texto passaremos a nos ocupar a partir de agora.

De início, é importante refletir sobre a tradução do texto, ou especialmente do seu título.

Na tradução para o português, o artigo aparece como “O mundo do Catch”, na versão inglesa aparece como “The World of Wrestling” e na versão espanhola como “El mundo del catch”. No entanto, ao olharmos o título em francês, língua em que o livro foi originalmente escrito, o texto aparece como “Le monde où l’on catche”.

Pode parecer irrelevante, mas a tradução do título deste texto do Barthes pode comprometer a profunda ideia do autor. Isso porque a tradução literal, direto do francês, seria não “O mundo do Catch”, mas “O mundo onde lutamos”. Vai ficar mais claro a partir das seguintes explicações:

O Catch, que Barthes se ocupa analisando, era um estilo de luta comum na França de seu tempo. Era uma luta no estilo do que, aqui no Brasil, chamávamos de “Luta Livre’. Acerca desta luta, o autor destaca (1972, p. 11) que “a sua virtude é a de ser um espetáculo excessivo”. Por que Barthes destacou este ponto? Porque o Catch era uma forma de divertimento que combinava performances esportivas e teatrais. Assim, o Catch, que parecia ser violento e parecia ser realmente uma luta, na verdade era competitivo apenas em aparência. Daí Barthes destacar:

Muita gente pensa que o catch é um esporte ignóbil. O Catch não é um esporte, é um espetáculo, e é tão ignóbil assistir a uma representação da dor no catch como ao sofrimento de Arnolfo ou de Andrômaca.

Só para nos situarmos: Arnolfo era o famoso personagem de uma peça teatral que fez imenso sucesso em Paris chamada “L’école des femmes” — A escola das mulheres — escrita por Molière. Uma peça que trata da infidelidade conjugal. Nesta obra do Molière, Arnolfo é um sujeito que fica com o cargo de contar a todos os homens traídos de Paris a traição que lhes chegou à porta. Até que um dia é Arnolfo o traído e sabe do seu infortúnio por meio de Horácio; por outro lado, Andrômaca é uma mulher da mitologia grega, contada por Eurípedes. Segundo a mitologia, Andrômaca, na mocidade, casou-se com o Heitor, príncipe da cidade de Troia, do qual teve um único filho: Astíanax. Quando os gregos atacaram Troia, perdeu o pai, sete irmãos e o marido, todos massacrados pelo Aquiles. O filho também morreu.

Chama a atenção o fato de Barthes colocar um Catch no mesmo patamar de duas obras literárias de imenso sucesso porque, para ele, todas as três são representações da realidade e simulam a mesma coisa: a dor. Segundo ele (1972, p. 12),

Esta função de ênfase (do Catch) é a mesma do teatro antigo, cuja força, língua e acessórios (máscaras e coturnos) concorriam para fornecer a explicação exageradamente visível de uma Necessidade.

Mas Barthes não cita o Catch junto a estas duas obras imortais da literatura por acaso, mas o faz porque, àquela época, o Catch era mais popular e mais procurado pela população do que livros e teatros com suas famosas peças. Barthes quer chamar a atenção para o fato que já citamos: a semiótica deve se debruçar sobre questões do cotidiano do povo.

Do que foi dito até aqui, convém a nós voltarmos à explicação do título e do problema das suas traduções. É que Barthes não está preocupado em fazer uma análise do "esporte" chamado Catch. Este esporte foi escolhido porque ele trazia em si as características do fenômeno que o autor queria analisar. A questão não era o Catch, mas as aparências de realidade por trás das falsidades e ilusões de sua prática.

Desta maneira, Barthes não usa a palavra Catch, mas catche — que é o ato de praticar o esporte. Enquanto Catch é substantivo, Catche é verbo. Quando o autor escolhe o título “O mundo onde lutamos”, ele quer dizer que todos nós estamos inseridos numa sociedade que, como no esporte chamado Catch, simula a vida social.

Barthes, como semiólogo, quer apontar as características dessa sociedade acima citada e criticá-la. Por esta razão que, no prefácio escrito em 1970, ele não deixou de esclarecer que “só haverá semiologia se esta finalmente se assumir como semioclastia”. O que isso significa? Semioclastia é uma ferramenta semiótica e política, capaz de oferecer uma visão outra aos objetos de pesquisa do contemporâneo. É um instrumento teórico que fornece condições para efetuar análises críticas do cotidiano. Desta maneira, Barthes não realiza apenas uma análise semiológica, isto é, dos signos que estão presente no Catch, mas vai além e produz um estudo semioclástico da referida luta ao mesmo tempo que aponta como esta é, também, uma representação da sociedade.

Assim, para Barthes, “o mundo onde lutamos” é o mundo tal como o Catch: formado por um espetáculo excessivo onde há a representação da dor. É um mundo das aparências e das dissimulações.

Tal afirmativa nos conduz à leitura de outro teórico francês, o Guy Debord e seu livro “A sociedade do espetáculo”. É nesta obra que, por meio do estilo presente nas teses de L. Feuerbach, o autor anota a sua primeira tese (2003, p. 13):

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era devidamente vivido se esvai na fumaça da representação.

E, mais adiante, nas teses 3 e 4, formula o seguinte pensamento

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e o seu instrumento de unificação. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.

Para Guy Debord, como para Roland Barthes, todos nós estamos inseridos em uma sociedade que, como o Catch, funcionava mais como a representação da realidade do que a própria realidade. É neste mundo que lutamos, diz Barthes: onde a aparência se torna mais valorizada no contexto das relações sociais e onde o parecer ser se torna mais importante que o ser.

Então são por todas as razões que o texto do Barthes não pode ser traduzido por “O mundo do Catch”, mas sim traduzido literalmente do francês como “O mundo onde lutamos”, já que a intenção do autor, como já dissemos, não é analisar o esporte, mas fazer uma análise semiótica do esporte extraindo seus signos — significados e significantes.

Ao extrair os signos do Catch e apontar a nossa vida, tal como Debord demonstrou, como um conjunto imenso de aparências, Barthes destaca (1972, p. 16) que tudo o que vivemos apenas

“oferece uma imagem inteiramente exterior. (Tudo) trata-se apenas de uma imagem e o espectador não deseja o sofrimento real do lutador e saboreia unicamente a perfeição da iconografia”.

Ocorre que, neste mundo de representações, Barthes denuncia que a sociedade age como os espectadores que se deslocavam para assistir as fantasias do Catch e, uma vez acomodados para o espetáculo, não se importavam com as coisas autênticas, mas bastavam-lhes as ilusões. No dizer de Barthes (1972, p. 14):

O que o público reclama é a imagem da paixão e não a paixão em si. Não existe o problema da verdade. O que se espera é a figuração inteligível de situações morais habitualmente secretas.

Para o autor, a nossa vida, o mundo onde lutamos e estamos inseridos, tal como o esporte que ele analisa, não passa de um esvaziamento da interioridade em proveito de seus signos exteriores. É um esgotamento do conteúdo pela forma. Não se oferece vida, mas um grande espetáculo.

Diante de todo o exposto, penso que não seja difícil aceitar a tese de que a tradução do artigo do Roland Barthes, seja em português, inglês ou espanhol, esteja realmente equivocada e que tal equívoco faz o autor não dizer absolutamente nada do que queria e, como prejuízo, nós, os leitores, ficamos privados das ideias essenciais do texto.

Pois bem. Estamos, segundo Barthes, assim como numa partida do Catch, inseridos em uma sociedade de espetáculos, falcatruas e imagens distorcidas da realidade. E aí? Aí agora nem mesmo o Barthes trouxe alguma solução. Deixou a questão para quem ler o texto…

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Wagner Francesco
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Written by Wagner Francesco

Advogado, teólogo e graduando em Letras

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