PADRE PEDRO: O TEÓLOGO DA LIBERTAÇÃO NA OBRA “CAPITÃES DA AREIA”, DO JORGE AMADO

Wagner Francesco
4 min readAug 16, 2021

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O livro “Capitães da Areia”, publicado pelo escritor baiano Jorge Amado, em 1937, é certamente um dos melhores livros da nossa literatura. Particularmente, em genialidade comparo com “Os miseráveis”, do Victor Hugo — e no desempate eu votaria em favor da nossa obra.

Este livro é tão importante e impactante que foi queimado durante o Estado Novo. A queima ocorreu em novembro de 1937, ardendo na Cidade Baixa de Salvador, ali pertinho do Mercado Modelo.

A razão da queima? A de sempre: perseguição ao comunismo, uma paranoia do então presidente Getúlio Vargas.

Pois então: se o livro foi queimado, coisa muito boa ele trazia dentro de si. E sim! O livro é maravilhoso, pois narra o cotidiano de um grupo de crianças pobres que moravam e perambulavam pelas ruas da capital da Bahia, chefiado pelo capitão Pedro Bala. O livro apresenta-nos os personagens Professor, Gato, Sem-Pernas, Dora (única mulher do grupo) e outros. Dentre estes outros personagens destaco um: o Padre José Pedro.

O padre Pedro é um dos poucos amigos dos Capitães da Areia e a primeira vez que aparece no livro é procurando confusão com as autoridades, pois denuncia os abusos cometidos no Reformatório. Diz o Padre:

Eu tenho ido lá (no Reformatório) levar às crianças o consolo da religião e as encontro pouco dispostas a aceitá-lo devido naturalmente ao ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade.

Padre Pedro era muito humilde. Segundo sabemos, não era considerado uma grande inteligência entre o clero. Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padres da Bahia. Mas tinha um diferencial importante para o exercício de sua profissão: a compaixão para com os marginalizados.

Conforme a narrativa do Jorge Amado,

O problema dos menores abandonados e delinquentes, que quase não preocupava a ninguém em toda a cidade, era a maior preocupação do Padre José Pedro.

Para o Padre Pedro, cuidar destas crianças era cumprir o seu papel de servo de Deus. Ele podia não ter toda a ciência teológica que seus superiores e os demais padres tinham, mas seu coração entendia, como ninguém, a mensagem do Evangelho de Jesus e sua ordem: “deixai vir a mim as crianças e não as impeçam”, cf. Mateus 19:14.

Ao tomar conhecimento da atitude do Padre Pedro, lembrei-me imediatamente da Teologia da Libertação. Pensei: o Jorge Amado está nos apresentando um teólogo da libertação antes dela historicamente existir. Digo isso porque, historicamente, este olhar teológico nasce após o Concílio Vaticano II — especialmente em 1971, quando o padre peruano Gustavo Gutiérrez publicou o livro “A teologia da libertação”.

Padre Pedro, sem ler o Gustavo Gutiérrez, entendia que o líder religioso não deveria apresentar somente a mensagem cristã sem enfrentar os problemas sociais daqueles que receberiam a mensagem. Por isso sabemos, pela brilhante narrativa do Jorge Amado, que o Padre Pedro

Queria se aproximar daquelas crianças não só para trazê-las para Deus, mas como meio de, de alguma forma, melhorar a situação delas.

A coisa, no entanto, fica complicada para o Padre. Como sempre, o poder político e religioso da época se insurge contra aqueles que ficam ao lado do pobre e contra os interesses dos ricos. Por esta razão fora chamado à presença de seu superior, acusado de ser amigo das crianças e de compactuar com seus roubos e crimes. O padre então é acusado de ter praticado o mesmo pecado que Jesus praticou: andar com os pecadores, cf. Mateus 9:11.

Jorge Amado não diz, mas com certeza que o Padre se lembrou do que disse Jesus:

Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que vós, odiou a mim (João 15:18), “mas tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições, mas eu venci o mundo (João 16:33).

O que sabemos é que o Padre, diante da acusação de seu superior, se encheu de coragem e disse:

Eles (as crianças) roubam pra comer porque todos estes ricos que têm para botar fora, para dar para as igrejas, não se lembram que existem crianças com fome.

Imaginem a resposta do seu superior… Isso mesmo, com a voz cheia de autoridade gritou: “cale-se. Quem o vê falar assim dirá que é um comunista. O senhor é comunista, um inimigo da igreja…”

Antes como hoje: ser chamado de comunista por querer colocar em prática os ensinamentos de Jesus. A igreja se fecha para o mundo, vira as costas para o pobre e estende a mão para os ricos, porque o contrário é comunismo.

Padre Pedro se manteve firme e ficou até o fim junto aos Capitães da Areia — mais tarde indo trabalhar junto aos cangaceiros, com o pessoal sofrido da laia do bando de Lampião. Padre Pedro pôde, ao fim da vida, dizer como disse o Apóstolo Paulo:

combati o bom combate, terminei a carreira e guardei a fé. Agora me está reservada a coroa da justiça que o Senhor, o Justo juiz, me dará no dia do julgamento, cf. 2 Timóteo 4:7–8.

Padre Pedro foi um exemplo. Como muitos outros foram e como hoje, por exemplo, o Padre Júlio Lancellotti é.

Viva Jorge Amado. Obrigado por este personagem, Jorge!

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Written by Wagner Francesco

Advogado, teólogo e graduando em Letras

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