Quão perigoso pode ser um comentário maldoso?
Neste ensaio, me ocupo dos dois primeiros capítulos da obra “um, nenhum e cem mil”, do italiano Luigi Pirandello; quais sejam:
I — Minha mulher e o meu nariz e;
II — E o seu nariz?
Até o fim do segundo capítulo, não sabemos o nome completo do personagem que, no primeiro parágrafo do livro, é visto “demorando estranhamente diante do espelho”.
É o curioso o fato da presença do espelho no início de toda a trama. Segundo o dicionário de símbolos (Chevalier & Gheerbrant), “o espelho reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência”. E lá estava Moscarda, sobrenome do sujeito que ficamos sabendo apenas no segundo capítulo, demorando estranhamente diante do espelho; segundo ele, em razão de uma “dorzinha quando aperta o nariz”.
O nariz! Eis a razão de todo o mal — mal que, segundo nosso personagem,
“em breve me reduziria a condições de espírito e de corpo tão miseráveis e desesperadoras que certamente me teriam matado ou enlouquecido. Um simples defeito no nariz que “caia para a direita”.
Deixa-me explicar melhor a situação: Moscarda se encontra diante do espelho, analisando uma dor que sentia, e a sua esposa aparece o ridicularizando com a seguinte frase:
“pensei que estivesse olhando pra que lado ele cai”.
Diante da inesperada constatação, ele responde: “Cai? O meu nariz?”.
E, a partir daí, revela constrangido:
“Eu tinha 28 anos e sempre, até então, havia considerado o meu nariz, se não propriamente belo, pelo menos bastante decente, assim como todas as outras partes da minha pessoa. A descoberta repentina e inesperada daquele defeito me irritou como um castigo imerecido. Se eu estava tranquilo na certeza de não ter defeitos, podia ir desfazendo minhas ilusões”.
Eis um ponto: por que Moscarda, com 28 anos, nunca tinha notado defeitos em seu corpo e vivia feliz? É possível que “um defeito” seja apenas uma questão de interpretação alheia? A pergunta é pertinente porque é razoável aceitarmos a ideia de que, durante esses 28 anos de vida, nosso personagem tinha visto o reflexo do seu rosto diversas vezes ao dia — senão por vaidade, por necessidade ao escovar os dentes, por exemplo. Se nunca viu um defeito ele não existia… até que alguém lhe falasse. E o próprio Moscarda afirma isso quando, ainda no primeiro capítulo, diz:
“precisei de uma mulher para me dar conta de havia defeitos em mim”.
Começa então a crise de identidade, porque Moscarda inicia uma série de reflexões pessoais, buscando entender como era possível que ele não conhecesse bem o seu próprio corpo. Entretanto, se conhecia. Conhecia-se de uma maneira e passou a conhecer de outra, pelo olhar de outra pessoa. O que certamente Moscarda não conhecia era como a sua esposa o via.
E eis aqui a questão: faz muita diferença como nos vemos e como as pessoas nos veem. E o problema é qual versão nossa irá guiar os nossos passos.
Nosso personagem escolheu a versão de si vista pelos olhos dos outros — e daí tudo começou a andar mal. Quem olha para si e está bem consigo vive bem como vivia Moscarda até os 28 anos. Enquanto buscava o espelho para resolver um problema seu, pessoal, que era uma dorzinha que sentia no nariz, tudo está bem, o problema foi quando começou a olhar o defeito em seu nariz que outra pessoa lhe apontou. Daí então foi só desgraça. Como ele próprio diz, após dialogar com um amigo,
“por vingança perguntei-lhe se, por sua vez, ele sabia que tinha uma pequena cova no queixo, que o dividia em duas partes desiguais”.
A vingança! Jesus nos alertou (Mateus 7:18) que
“nenhuma árvore má dá bons frutos”, isto é: nenhuma maldade trará algo benéfico.
De fato, nem o comentário da esposa do Moscarda foi inocente, tampouco o comentário dele para o seu amigo. O amigo do Moscarda, que nunca tinha percebido essa “cova no queixo”, passou de vitrine em vitrine observando o queixo, incomodado. E a cidade inteira se contaminou. Eis o que Moscarda nos informou:
“Não tenho a mínima dúvida de que, para vingar-se por sua vez ou para levar adiante uma brincadeira que lhe pareceu merecer uma ampla difusão na cidade, depois de ter perguntado a algum amigo se por acaso já havia notado aquele seu defeito, deve ter descoberto algum outro defeito na cara ou na boca desse seu amigo, o que, por sua vez… Eu poderia jurar que, por vários dias, nesta nobre cidade de Richieri, vi um número considerável de conterrâneos passando por uma vitrine de loja a outra e parando em frente a cada uma delas para observar em seus rostos uma maçã do rosto, um rabo dee olho, um lobo de orelha, uma ponta de nariz…”.
Um surto causado por uma infecção muito comum em nossa sociedade: a maldade dos nossos comentários. Uma doença que atinge nossa língua impedindo-a de fazer elogios ou ficar em silêncio, mas que a descontrola na oportunidade de machucar alguém. É como disse Tiago, em seu texto na Bíblia (3:6), ao nos alertar que “a língua é fogo e contamina o corpo” e assim como uma floresta pode pegar fogo em razão de uma pequena chama, um pequeno comentário pode incendiar o curso da nossa vida — e da vida do outro.
Há muitas mulheres do Moscada por aí: a questão é se a gente quer ser o Moscada que vive sob o nosso próprio olhar ou sob o olhar da mulher do Moscada.